Estava a escamar o peixe e as lágrimas começaram a tomar conta dela. Esfregou os olhos no avental antes que o Zé fosse à cozinha perguntar-lhe o que era a janta. Todos os dias a mesma rotina. Ou pelo menos, assim o pensava.
Ia trabalhar de segunda a sexta-feira num lar de idosos, onde amavelmente ajudava aquelas pessoas a esboçarem sorrisos mesmo quando sentiam o cemitério ali à porta e as rugas a engelharem-nas num caminho doloroso em direcção às covas. De segunda a sexta-feira das oito às cinco. Depois passava no mercado para comprar fruta e legumes, peixe ou carne. Essa rotina mudava no fim-de-semana, pois era aí que fazia “as compras da semana” no supermercado lá da terra.
Numa tentativa de preencher mais os seus dias sem “cobrar” tanto a presença do Zé começou a ir às segundas ao fim da tarde para o rancho cantar “modinhas” com as outras mulheres e às quartas até tinha começado a ir à natação porque dizem que faz bem ao reumático.
De segunda a sexta-feira por volta das oito da noite ia para a cozinha preparar o jantar e a marmita para eles os dois levarem no dia seguinte para a merenda da manhã.
Gostava de ter nascido rica, de ter mordomias como pequenos-almoços na cama com sumo de laranja natural, torradas com manteiga cara e uma flor, acordar tarde e a más horas com o Zé a dar-lhe um beijo em vez de o ouvir a ressonar quando se ia embora, muitas vezes ainda de noite, para trabalhar na vila.
As amigas diziam-lhe que não tinha motivos para se queixar, que era bom marido o seu Zé que trabalhava quase de sol a sol para ganhar mais uns trocos para poderem ir ao Alentejo apanhar sol todos os verões, e ela apesar de não o negar continua a dizer-lhes que sofria por ele não estar mais presente na vida dela. Tinha tempo para os jogos da malha, para a banda filarmónica, para ir ver a bola com os vizinhos e amigos, para ir passear o cão e para ela só tinha tempo para lhe agradecer pela comida e quando se sentia meio sensível se acocorar nela antes de dormir, muitas vezes porque já vinha bêbado perdido do tasco, a cantar todo alegre porque o seu clube tinha ganho.
Elas diziam-lhe que devia falar com ele, mas ela só tinha coragem quando chegava ao momento em que acumulava tanto que já mais pareciam grunhidos o que lhe dizia e fazia sofrer o pobre homem com isso. Ele não tem culpa, dizia. É um bom homem como vocês dizem. Eu é que sou assim, meia sensível. Uma delas dizia-lhe: – Então cala-te, oh mulher! Tu veste mas é uma camisa de noite rendada sem cuecas, que vais ver se ele não te resolve esses problemas todos das sensibilidades. E a Ricardina ria-se, meia envergonhada, e confessava que o homem quando queria isso ela até podia estar de gola alta que a atacava mesmo no alpendre se o deixasse. Uma vez ia partindo uma anca porque estava a estender as toalhas e ele ficou todo maluco por ver o meu rabo todo empinado, vê lá tu, dizia ela. E riam-se todas, com a mão a tapar a boquinha, porque até pensar nessas coisas era pecado.
Sempre tinha bons conselhos para dar às amigas, mas dar explicações ao seu coração tolo para se sentir menos solitário não conseguia. Um destes dias pego nas malas e vou-me embora, dizia. E que ganhavas tu com isso, oh Ricardina? – perguntava-lhe uma delas, enquanto bordava. Para ver o que ele sentia. Para ver se também gostava que o deixasse sozinho. Ia ficar danado o sacana, vais ver se não ia. E tu quê? Depois estavas menos sozinha? – perguntava-lhe outra. Sei lá, para ver se ele mudava e além das férias do verão no Alentejo arranjava tempo para mim de segunda à sexta e aos fins-de-semana um bocadinho também. – Deixa-te de coisas, mulher. Que já não és uma alface fresca e mais ninguém te pegava agora e olha que tens ali um bom homem e nestes tempos já não há cavaleiros que vão atrás de ti à tua procura. Fica mas é quietinha e agradece a Deus por teres um homem que te aqueça os presuntos de vez enquando e te diga que a comida está nos conformes – diziam-lhe.
E a Ricardinha sentia-se pequenina, com vontade de chorar sem saber muito bem porquê, se por aquilo ser verdade e ser ridícula a sua dor ou por não ter coragem de pegar nas malas e ir dali embora.Vou morrer sozinha, pensava. Sozinha como vivi.
[Significado do nome Ricardina: Para resolver os problemas dos outros age com muita sabedoria, já quando o problema é seu tende a sentir-se desnorteada. Isso acontece porque se sente mais confortável em decidir as coisas sempre com a cabeça fria. Mas o seu coração intromete-se sempre no meio das dúvidas, e tornando mesmo difícil a toma de decisões. Deveria controlar a ansiedade nestas horas e não ter medo errar.]
quarta-feira, maio 05, 2010
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3 comentários:
A Ricardina é o espelho de muitas mulheres, que fingem viver. Acomodam-se a uma situação "segura", contentando-se com o passar do tempo, sendo muito poucas as que resolvem efectivamente pegar nas malas e partir em busca do verdadeiro sentido da vida. Belo texto, sis.
As Ricardinas de outros tempos e que ainda perduram no presente. São vidas talhadas assim, deste modo, com este género.
O que me impressiona são as Ricardinas feitas no Hoje... com piores Zés... bem piores. Hoje, quando supostamente já não deveria existir "as coisas são assim mesmo".
Os meus sinceros parabéns por este texto.
Obrigada a ambos. Fazem-me sentir vontade de continuar a escrever.
(Estou a pensar fechar todos estes blogs e criar só um a que seja fiel...
Um beijo!
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