quarta-feira, maio 05, 2010

Ricardina

Estava a escamar o peixe e as lágrimas começaram a tomar conta dela. Esfregou os olhos no avental antes que o Zé fosse à cozinha perguntar-lhe o que era a janta. Todos os dias a mesma rotina. Ou pelo menos, assim o pensava.
Ia trabalhar de segunda a sexta-feira num lar de idosos, onde amavelmente ajudava aquelas pessoas a esboçarem sorrisos mesmo quando sentiam o cemitério ali à porta e as rugas a engelharem-nas num caminho doloroso em direcção às covas. De segunda a sexta-feira das oito às cinco. Depois passava no mercado para comprar fruta e legumes, peixe ou carne. Essa rotina mudava no fim-de-semana, pois era aí que fazia “as compras da semana” no supermercado lá da terra.

Numa tentativa de preencher mais os seus dias sem “cobrar” tanto a presença do Zé começou a ir às segundas ao fim da tarde para o rancho cantar “modinhas” com as outras mulheres e às quartas até tinha começado a ir à natação porque dizem que faz bem ao reumático.

De segunda a sexta-feira por volta das oito da noite ia para a cozinha preparar o jantar e a marmita para eles os dois levarem no dia seguinte para a merenda da manhã.
Gostava de ter nascido rica, de ter mordomias como pequenos-almoços na cama com sumo de laranja natural, torradas com manteiga cara e uma flor, acordar tarde e a más horas com o Zé a dar-lhe um beijo em vez de o ouvir a ressonar quando se ia embora, muitas vezes ainda de noite, para trabalhar na vila.

As amigas diziam-lhe que não tinha motivos para se queixar, que era bom marido o seu Zé que trabalhava quase de sol a sol para ganhar mais uns trocos para poderem ir ao Alentejo apanhar sol todos os verões, e ela apesar de não o negar continua a dizer-lhes que sofria por ele não estar mais presente na vida dela. Tinha tempo para os jogos da malha, para a banda filarmónica, para ir ver a bola com os vizinhos e amigos, para ir passear o cão e para ela só tinha tempo para lhe agradecer pela comida e quando se sentia meio sensível se acocorar nela antes de dormir, muitas vezes porque já vinha bêbado perdido do tasco, a cantar todo alegre porque o seu clube tinha ganho.

Elas diziam-lhe que devia falar com ele, mas ela só tinha coragem quando chegava ao momento em que acumulava tanto que já mais pareciam grunhidos o que lhe dizia e fazia sofrer o pobre homem com isso. Ele não tem culpa, dizia. É um bom homem como vocês dizem. Eu é que sou assim, meia sensível. Uma delas dizia-lhe: – Então cala-te, oh mulher! Tu veste mas é uma camisa de noite rendada sem cuecas, que vais ver se ele não te resolve esses problemas todos das sensibilidades. E a Ricardina ria-se, meia envergonhada, e confessava que o homem quando queria isso ela até podia estar de gola alta que a atacava mesmo no alpendre se o deixasse. Uma vez ia partindo uma anca porque estava a estender as toalhas e ele ficou todo maluco por ver o meu rabo todo empinado, vê lá tu, dizia ela. E riam-se todas, com a mão a tapar a boquinha, porque até pensar nessas coisas era pecado.

Sempre tinha bons conselhos para dar às amigas, mas dar explicações ao seu coração tolo para se sentir menos solitário não conseguia. Um destes dias pego nas malas e vou-me embora, dizia. E que ganhavas tu com isso, oh Ricardina? – perguntava-lhe uma delas, enquanto bordava. Para ver o que ele sentia. Para ver se também gostava que o deixasse sozinho. Ia ficar danado o sacana, vais ver se não ia. E tu quê? Depois estavas menos sozinha? – perguntava-lhe outra. Sei lá, para ver se ele mudava e além das férias do verão no Alentejo arranjava tempo para mim de segunda à sexta e aos fins-de-semana um bocadinho também. – Deixa-te de coisas, mulher. Que já não és uma alface fresca e mais ninguém te pegava agora e olha que tens ali um bom homem e nestes tempos já não há cavaleiros que vão atrás de ti à tua procura. Fica mas é quietinha e agradece a Deus por teres um homem que te aqueça os presuntos de vez enquando e te diga que a comida está nos conformes – diziam-lhe.

E a Ricardinha sentia-se pequenina, com vontade de chorar sem saber muito bem porquê, se por aquilo ser verdade e ser ridícula a sua dor ou por não ter coragem de pegar nas malas e ir dali embora.Vou morrer sozinha, pensava. Sozinha como vivi.




[Significado do nome Ricardina: Para resolver os problemas dos outros age com muita sabedoria, já quando o problema é seu tende a sentir-se desnorteada. Isso acontece porque se sente mais confortável em decidir as coisas sempre com a cabeça fria. Mas o seu coração intromete-se sempre no meio das dúvidas, e tornando mesmo difícil a toma de decisões. Deveria controlar a ansiedade nestas horas e não ter medo errar.]

sexta-feira, abril 16, 2010

Parto homicida


Um dia mato o teu nome.
Rasgo-o da minha garganta e apago a tua existência [em mim].
Um dia esquecerei que tu e eu já fomos siamesas e tivemos o mesmo coração, amor e angústias. Um dia esquecerei as tuas [im]perfeições e deixarás de ter importância para mim. Um dia deixarei de tentar lutar contra a ideia de que sempre foste e és melhor que eu. Um dia tentarei olhar-te como humana e não como
ora deusa ora besta.

Um dia esquecerei que a minha palavra “amo-te” te foi prometida para a vida toda e que tive que ta arrancar com os dentes com
o um lobo que devora a sua presa. Um dia perdoar-te-ei por tudo o que era meu e me roubaste e pedir-te-ei perdão por tudo o que te tirei e não me pertencia. Um dia aceitar-te-ei como és.

Um dia cruzarei os meus olhos com os teus, abraçar-te-ei e chorarei tempestades abraçada a ti por todos aqueles soluços que tentámos calar ao longo dos anos, em vão. Um dia construirei a minha arca de Noé e, nesse dilúvio dir-te-ei adeus. Um dia.

Um dia. Um dia. Nesse dia deixarei de tentar alcançar-te e superar-te, deixar-te-ei afogar junto com o passado e ao atingir a bonança no meu mar de pensamentos e sentimentos serei uma fénix renascida. E tu, tu não serás nada. Nem o teu nome que matei.

sábado, fevereiro 27, 2010

Bárbara


A chuva transbordava pelas bordas dos corações perdidos em ruas estranhas. Tudo era novidade e a euforia misturava-se com o medo mais facilmente do que o leite com o café.
Uma mala transbordava as memórias das últimas tendências de Paris, e, nas ruas de Lisboa o brilho dos sapatos purpurina não combinava muito com os gritos de angústia da calçada fria.

Bárbara era bailarina desde criança, participou em espectáculos desde a dança dos Cisnes até aos mais recentes ritmos de Hip Pop; aprendeu a pintar aos 14 anos quando emergiu da sua adolescência uma necessidade gritante de expor a forma como via o mundo.
Deambulou pelas ruas de Praga tentando dançar com as estátuas de Kafka, viveu em Londres até o céu cinzento lhe substituir todas as cores dos seus pincéis, embriagou-se de palavras e poemas gritantes pelas ruas de Verona até que um dia chegou a Lisboa.

Com meia dúzia de trocos no bolso pediu emprego e dormida numa pensãozeca na rua Augusta. Tinha um corpo esguio e frágil, uma cara delicada em tons de porcelana e o olhar meio perdido. Os donos concordaram em silêncio e estenderam-lhe a chave para quatro paredes por pintar com uma cama e um candeeiro foleiro, e um contrato de oito horas diárias com folgas rotativas.

Bárbara saída todos os dias com ânsia de respirar aquele sentimento de "Saudade" só existente naquelas ruas portuguesas, pensou "vou ficar aqui para sempre", pensava reviver aí o prazer do amor sofrido que as calçadas quebradas lhe confessavam. Pensava ser capaz de se alimentar daquele sentimento, sem precisar sequer dos trocados que os donos da pensão lhe pagavam.
Escreveu gritos, gemidos de prazer ali e balbuciava sempre algo que lhes parecia sempre romântico só por ser dito num tom francês.
Escreveu as suas mágoas em corpos vazios de amor, tentou encontrar as palavras que a fizessem ficar ali, mas por muito que dominasse o idioma sempre seria uma "estrangeira", mesmo que se vestisse dos melhores dicionários que a fnac oferecia já com o Acordo Ortográfico integrado.

Um dia guardou nas suas malas a dança, as pinturas e os livros que escreveu e decidiu voltar a Paris.
Ao chegar perguntou a um estranho se sabia qual era a linha para a Av. Champs Elysées e ele depois de amavelmente lhe ter dito perguntou-lhe se queria que lhe indicasse alguns dos ex-líbris da cidade. Ela sorriu, meia apagada, e agradeceu dizendo que não.
Naqueles anos muitas coisas tinham mudado, também o seu sotaque além das linhas do metro e dos edifícios mais "in" de Paris. Ela baixou a cabeça e olhou para a mala, aí soube que a partir do momento em que saiu dali passou a ser uma estrangeira para sempre, até no seu próprio país.


Bárbara: (Greco-latino) - Estrangeira, estranha, que balbucia, que gagueja por medo.
Significa estrangeira e associa-se a uma pessoa original, que está sempre em busca de novidades. Por isso, quando sente que as suas tarefas estão a tornar-se rotineiras, trata logo de mudar de actividade. Criativa, pode fazer sucesso nas artes ou na literatura, mas não se preocupa muito em ganhar dinheiro com isso.



Pic: La passage

sexta-feira, janeiro 22, 2010

Amor



Um dia apercebi-me que ele realmente me ama pelo que sou e fiquei deveras envergonhada pelos outros dias em que, secretamente, o quis mudar para a imagem do que eu pensava que ele era.