sábado, fevereiro 27, 2010

Bárbara


A chuva transbordava pelas bordas dos corações perdidos em ruas estranhas. Tudo era novidade e a euforia misturava-se com o medo mais facilmente do que o leite com o café.
Uma mala transbordava as memórias das últimas tendências de Paris, e, nas ruas de Lisboa o brilho dos sapatos purpurina não combinava muito com os gritos de angústia da calçada fria.

Bárbara era bailarina desde criança, participou em espectáculos desde a dança dos Cisnes até aos mais recentes ritmos de Hip Pop; aprendeu a pintar aos 14 anos quando emergiu da sua adolescência uma necessidade gritante de expor a forma como via o mundo.
Deambulou pelas ruas de Praga tentando dançar com as estátuas de Kafka, viveu em Londres até o céu cinzento lhe substituir todas as cores dos seus pincéis, embriagou-se de palavras e poemas gritantes pelas ruas de Verona até que um dia chegou a Lisboa.

Com meia dúzia de trocos no bolso pediu emprego e dormida numa pensãozeca na rua Augusta. Tinha um corpo esguio e frágil, uma cara delicada em tons de porcelana e o olhar meio perdido. Os donos concordaram em silêncio e estenderam-lhe a chave para quatro paredes por pintar com uma cama e um candeeiro foleiro, e um contrato de oito horas diárias com folgas rotativas.

Bárbara saída todos os dias com ânsia de respirar aquele sentimento de "Saudade" só existente naquelas ruas portuguesas, pensou "vou ficar aqui para sempre", pensava reviver aí o prazer do amor sofrido que as calçadas quebradas lhe confessavam. Pensava ser capaz de se alimentar daquele sentimento, sem precisar sequer dos trocados que os donos da pensão lhe pagavam.
Escreveu gritos, gemidos de prazer ali e balbuciava sempre algo que lhes parecia sempre romântico só por ser dito num tom francês.
Escreveu as suas mágoas em corpos vazios de amor, tentou encontrar as palavras que a fizessem ficar ali, mas por muito que dominasse o idioma sempre seria uma "estrangeira", mesmo que se vestisse dos melhores dicionários que a fnac oferecia já com o Acordo Ortográfico integrado.

Um dia guardou nas suas malas a dança, as pinturas e os livros que escreveu e decidiu voltar a Paris.
Ao chegar perguntou a um estranho se sabia qual era a linha para a Av. Champs Elysées e ele depois de amavelmente lhe ter dito perguntou-lhe se queria que lhe indicasse alguns dos ex-líbris da cidade. Ela sorriu, meia apagada, e agradeceu dizendo que não.
Naqueles anos muitas coisas tinham mudado, também o seu sotaque além das linhas do metro e dos edifícios mais "in" de Paris. Ela baixou a cabeça e olhou para a mala, aí soube que a partir do momento em que saiu dali passou a ser uma estrangeira para sempre, até no seu próprio país.


Bárbara: (Greco-latino) - Estrangeira, estranha, que balbucia, que gagueja por medo.
Significa estrangeira e associa-se a uma pessoa original, que está sempre em busca de novidades. Por isso, quando sente que as suas tarefas estão a tornar-se rotineiras, trata logo de mudar de actividade. Criativa, pode fazer sucesso nas artes ou na literatura, mas não se preocupa muito em ganhar dinheiro com isso.



Pic: La passage